quinta-feira, 21 de abril de 2011

Portugal 1: Como as pedras de uma catedral...

Como as pedras de uma catedral levantam-se numa prece as paredes sem telhado do lagar, o vão vazio de
telhado sobe em vertigem para o céu. Estes cilhares esmagam, erguem-se como torres e muralhas de um castelo, arredondam portas e suportes das bojudas vasilhas. O cheiro do vinho desapareceu. Uma quinta como uma ara votiva, um altar de pedra e nos granitos antiquíssimas inscrições: 1791, no torso da parede, e, num esteio deitado, as figuras gravadas de três seres humanos que nos olham da pré-história. Como foi possível esta desordem, esta ruína e esta presença humana, que permanece!?

É a mão do homem que emerge num buxo denso que rodeia o poço abandonado, é a sua figura que assombra o plaino como uma sentinela, no esteio do picanço sem braço. A lua brilha entre a copa dos pinheiros mansos e tem um tom laranja do véu de fumo que nos aranha a garganta. No monte repousa um motociclo, sobe a voz do cão pastor e o som das patas em tropel, invisíveis entre os campos de milho úberes de negra terra.

Nas poldras da ribeira um poço escavado e ainda a lama e a folhagem da antiga represa, torres de granito cortadas à faca, como o capacete de um soldado, da forma das asas sobrepostas de um gafanhoto.

A Beira vive e morre desta maneira. Escutai-me ao menos desta vez. Que vamos fazer? Está tudo errado, menos a música que ressoa dos altifalantes da festa aldeã. Eles mereceram-na, vieram da emigração para se encontrarem e não importa se este som não tem a grandeza da sinfonia, nem a classe do quarteto, nem ao menos o toque da moda. Mas o resto, este abandono, este toque suicida das sirenes, esta corrida de pesados carros de bombeiros perigosamente lançados pelas ruas cobertas de gente, pelos desfiladeiros onde já não se encontra vivalma, que sentido tem isto? Quem nos muda a mata destes pinheiros ardentes? Quem nos trás de novo os carvalhos sombrios?

O carro parou entre as lajes, inútil. E subo a grandes passadas, transporto o fardo do corpo sentindo que sou o jovem que carrega o cinquentenário, Sim, escutai-me! Estou prestes a revelar-vos um segredo valioso. Consigo conservar neste mesmo corpo o ser que já fui, vejo-lhe os contornos jovens e é ele que me carrega sobre o dorso do caminho murado e lajeado. Eis como me torno ausente da morte e da mesquinhez dos dias.

Sim, penso no ministro da administração interna. Conheço-o bem e basta-me ouvi-lo. Jamais estará tão perto deste fogo sufocante como aqui estou. Jamais entenderá este murmúrio das almas petrificadas. Tomará medidas de papel, voará entre helicópteros libébulas, e o engenheiro fará o elogio do seu trabalho, da arte do possível, como escreveu o outro ministro, ainda na fase idealista. Sim. Sei que são medidas concretas, mas o drama do osso e da carne desta terra, esse prosseguirá. Não, não é por aqui. Não. O meu mundo não é deste reino. Mas este é o momento em que tenho de ter cuidado. Olha o panfleto que se insinua como a tinta perdida pela esferográfica e mancha a escrita. Olha a filosofia que se perde. Mas, caramba, como dizer as coisas, afinal?

Ao longe está a Estrela.

Os seus rebanhos já não percorrem as canadas. A serra é uma imagem, neste lugar, cortada de azul como um postal. Conheço muito das vidas que ali ninguém pressente. Porque caminhamos todos demasiado perto da pele das coisas, da pele das ruas, o olhar fechado nas esquinas. Como ver o perto e o longe, se não for na história das vidas de pessoas!?. Sim, essa questão do valor das pessoas. Proponho um critério: ser útil ao seu semelhante. Ninguém estar mais vivo à custa de outro que está menos vivo, e isto, é o que escreveu o poeta-engenheiro. Como é possível que esteja esquecido? Poeta menor? Que podia ter ido muito longe se não fora? Mas o que não foi? Falou claro, escreveu claro para que o compreendessem. Não militou conforme o cânone? Mas hoje, morto que é, duas vezes, pelo esquecimento. Mortos que estão os socialismos, quase todos. É outra vez o poeta, mas outro, de que dizem também ser menor, e satírico, sendo que foi também lírico e do melhor, mas com a voz de hoje, estandardizada, não há outra, que evoquei nesta pouco original passagem, “quase todos”. E, agora escrevo, não é ele que permanece?

Anda Jorge, que não conheci, mas amei e amo, sobretudo neste tempo sem laudas nem homenagens, deixa-me gravar o teu nome aqui mesmo, junto desta pedra milenar, justa homenagem aos que prevalecem.

Penso nos braços que limaram o ribeiro dentro da lameira e pergunto-me se uma obra de arte universal vale mais? Diria que sim, mas…Porquê opô-las, às duas obras? Deixo ao vosso cuidado, este outro pensamento. E regresso à minha peregrinação.

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