segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Portugal 12: Regressei hoje às margens do rio Côa...

Regressei hoje às margens do rio Côa. Encontrei as nossas gravuras crestadas pelo bafo do estio e
decepadas por cristais de gelo, lajes colossais sacudidas em pedaços pelo torpor profundo da mãe terra; tinham perdido os ocres que extraímos da rocha e moemos durante muitas luas, até ganharem a cor do sangue e dos chãos que pisámos; também a gordura e as cinzas que usámos para avivar as manchas das barrigas, dos joelhos e da cara dos nossos companheiros de jornada tinha escorrido dos seus corpos, então cobertos pela luz de diferentes sóis. Os animais, que perseguimos pelos vales e caudais profundos, pareciam-se agora com as suas peles ressequidas, se não fora continuarem a agitar as cabeças num estremecimento de prazer, como quando os observávamos saciados de água fresca; ou no tempo em que cruzavam as hastes e saltavam inquietos em todos os recantos do bosque, nas noites brancas de luz. O seu pasto, rareava agora nas margens e na encosta, as árvores de grandes sombras tinham desaparecido; numa vertente eram pequenas e achatadas pelo calor em brasa, do outro lado, cobriam de verde rasteiro a montanha como as plantas que enchem os charcos. Não encontrei sinais dos meus parentes, não vi o fumo das suas fogueiras a indicar-me a rota de regresso...apenas no céu voltei a ver essas extraordinárias criaturas que desaparecem quando começam as longas chuvas e regressam na primeira madrugada tingida pelas cores do fogo e, no alto das nuvens, vi subir grandes sombras que devoram as carcassas podres mais depressa que os nossos cães e pescam nos rios o mesmo peixe que comemos e vivem no pico das montanhas da lua e do sol.

Perdi a coragem para continuar e decidi descer o rio, ao encontro dos nossos acampamentos mais antigos. Quantas luas e sóis passaram desde que aqui chegámos, o que significa mais de 20.000 anos? E Património da Humanidade? Às vezes encontrávamos sinais de outros grupos: os ossos queimados, um monte de conchas na areia...um sinal longínquo de fumo, mas seria gente ou apenas um raio que ateou um incêndio? Como podem estes animais pertencerem-nos se são eles que nos dão vida? Como podemos tomar a terra como nossa, se ela não tem fim para além dos horizontes que atravessámos e havemos de explorar, seguindo as manadas, colhendo os frutos. E a água que nos mata a sede, seríamos loucos em querer guardá-la na concha das mãos, ou no barro que cozemos para guardar as sobras de um refeição tão farta como rara. Assim me vêm os pensamentos, enquanto caminho ansioso apoiado no meu bordão. Chego a uma praia onde o rio corre mansamente e a margem se alarga e reconheço um dos nossos lugares sagrados. Daqui partimos para novos terrenos de caça, e aqui deixámos mais lajes gravadas com a ponta de calhaus finamente aguçadas e outras, profundamente marcadas pelo toque seco de duas pedras, uma estreita e afiada, a outra redonda e dura, retirada do próprio leito, imagens de cabras que nos olhavam do cume dos rochedos, de belos cornos, manadas de cavalos correndo à desfilada, e poderosos auroques, pejados de nervos e de fulgor.

Mas que é isto? Que vejo desenhado na pedra gravada pelos pais dos meus pais? Onde havia um magnífico boi selvagem, alguém picou o corpo e a cabeça e desenhou crinas e patas de cavalo, e sentado no seu dorso um homem, armado de arco e flechas, com um grande pau atravessado na cintura. Que significa este desenho? Como se deixou o cavalo submeter ao peso deste homem? Porque passou a sua fúria para os braços armados? Decorreram 10.000 anos? Não sei o que significa, mas se não reconheço este mundo, se toda a minha família desapareceu, é porque passou assim tanto tempo? E o que é o tempo? E a morte?

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